sábado, dezembro 22, 2012

Promoção 2013, uma canção e um texto por Vânia Vidal



Oi, Pessoas! Tudo bem?

Já que o mundo não acabou, aqui estou para anunciar o resultado da promoção 2013. Houve dois participantes: o Sandro Quintana, que sugeriu uma continuação focada no retorno de Laura e Octavio ao Condado, e a Vânia Vidal, minha amiga que está trabalhando em seu primeiro romance enquanto avança em sua dissertação de mestrado. Mesmo com tanta coisa a ocupar seu tempo, ela produziu um texto em primeira pessoa, narrando a odisseia do casal ao longo de vários anos. Foi escrito muito rapidamente (afinal, o mundo podia acabar!), mas ficou ótimo a meu ver, assim como as sugestões do Sandro.

Assim, ambos fazem jus à premiação, e agora mesmo vou avisá-los para combinarmos os detalhes da entrega dos livros - uma cerimônia de preferência acompanhada de um café, pois ambos vivem no Rio, será uma boa ocasião para nos encontrarmos.

A ideia do Sandro para a continuação está nos comentários do post. Já o texto da Vânia, com sua permissão, eu reproduzo aqui, juntamente com o pedido da autora para que vocês deem sua opinião.

Lá vai ele:
...

"Não havia um só lugar seguro em toda a terra.”

Este foi o meu último pensamento ao deixar o Condado, mas eu estava errado. Não me olhe assim, não sou nenhum covarde, não estou aqui tentando enfeitar meu passado, nem dizendo que as coisas são diferentes do que elas são. Ou foram. Nós nunca voltamos, se é isso o que você quer saber, Juan, mas é claro que sua avó tem outra versão e você está bastante crescidinho para tirar as próprias conclusões. O Condado ficou para trás.

Quando descemos a montanha, encontramos uma terra devastada. Terrível, mas ainda assim muito melhor do que esperávamos encontrar. Não, você não tem noção, aliás, ninguém da sua geração, nem pelos filmes que sobraram, ou pelas imagens digitalizadas e recuperadas pelas nuvens de átomos – ou não é assim que chamam aquelas telas feitas de sabão? Bom, não importa. O que importa é o que tenho para lhe contar, afinal, eu também estava lá. Eu senti o cheiro putrefato dos cadáveres às centenas de milhares, empilhados de todas as maneiras possíveis, por todos os cantos onde não sobrara ninguém vivo para dignificar os mortos. Para cada lugar que se olhasse havia centenas deles, mães apertando crianças contra o peito, mãos esticadas suplicando por um socorro que nunca chegaria, homens tentando escapar, velhos encolhidos sobre os joelhos....

Juan, Juan... Depois de meses sob chuva ácida nada mais resta que se pareça com um rosto humano, exceto as expressões que a morte imprime de terror mesmo quando já não podemos distinguir pele e cabelos. Mesmo quando tudo o que resta é uma silhueta crispada, cristalizando para sempre o último movimento, ainda que destroçados, é possível em meio ao caos distinguir uma família. Não sei nem como lhe dizer, Juan, exatamente o que vimos logo na primeira curva. Até hoje não encontro palavras que o definam. Creio até que sua avó, que sempre sabe das coisas, consiga lhe dizer algo que preste. E fora isso, o fedor da morte em cada mínimo detalhe, havia o lixo trazido pelas enxurradas, pelos desmoronamentos, pelos vendavais e pelos humanos que sobraram.

A radiação havia baixado para um nível tolerável para a vida humana, se é que o nível em que chegara naqueles meses tivera sido suficiente para morticínio, e você deve saber que o tolerável está muito longe do ideal. Os marcadores do condado podiam estar mal regulados, ou talvez o desconhecimento acerca da física nuclear fosse realmente grande naqueles tempos, não sei. Nós não tínhamos os conhecimentos de agora, nem conseguíamos fazer a fusão nuclear do hidrogênio direito ainda! Dependíamos daquele troço grosseiro, grotesco, gosmento, e preto, que você, Juan, você nunca viu... e que para nós era essencial, pois dele retirávamos combustível e toda uma gama de produtos plásticos... Enfim, não foi difícil perceber que não éramos os únicos a descer aquela montanha.

Eu falei dos cadáveres, mas omiti uma coisa. Muitos estavam mutilados, e não era por acaso ou força da natureza, que desprega as juntas e incha todo o resto, não... Sua avó foi a primeira a notar os cortes. Os cortes, a simetria, os locais. Aquilo não era obra do acaso, aquilo era obra de gente, e de gente que pensava, e tinha mãos firmes e fortes. Não sabemos se foram feitos antes ou depois de... Não, eu não faço a menor ideia de qual é o gosto de carne humana. Mas, seja lá como for, havia pessoas que sobreviveram graças a isso. E nós iríamos encontrá-las mais cedo ou mais tarde. Não espere que alguém vá se confessar a você, e dizer: eu fiz, eu comi, eu sei. Não vai. Há a vergonha maior, a de sobreviver, e minha geração é refém dela. Ninguém gosta de admitir que deu graças quando percebeu que o mundo acabara para os outros, não para si, mesmo que significasse suas famílias e amigos.

Sempre é tempo para recomeçar, Juan, isso é uma certeza piegas e uma verdade universal. Embora felizes por estarem vivos, irremediavelmente tristes por sobreviverem: assim é a geração dos seus avós, a minha, a de sua avó. Nem mesmo ela, tão forte, tão decidida, escapou desse infortúnio. Você já deve ter lido a infinidade de teses a respeito, não?

Mas... como dizia... ah sim, nós iriámos nos deparar com pessoas que haviam mastigado crianças e velhos, era claro que eu agradecia o fato de termos conosco armas. Nós dois sabíamos usá-las, afinal, havíamos sido treinados e preparados para aquele tipo de situação. Era o que repetíamos na nossa cabeça, pois a realidade Juan é sempre pior, nenhum aprendizado sob condições controladas pode preparar ninguém para lutar pelo próprio pescoço. O ser humano tem algo imprevisível correndo nas veias, que são os instintos, ou hormônios, sei lá. Sei que a adrenalina faz com que todo e qualquer raciocínio lógico desmorone quando o negócio é fazer as pernas se moverem e os dedos apertarem o gatilho.

Quando vi aqueles homens sedentos de corpo de mulher, ainda mais um corpo saudável como o da sua avó, se aproximando dela, suas narinas infladas farejando sexo, suas bocas sequiosas e seus olhares desvairados, apertei o gatilho. Matei sim, era eu ou eles, era sua avó ou eles. Éramos nós ou eles. É claro que a lei do mais forte se impunha também para nós dois, apesar dos nossos brios. Foi o pior momento de toda a minha vida, olhar para os corpos dos homens que eu mesmo matei. Aquela havia sido a primeira aldeia que encontrávamos em muitos dias pelas estradas que sobraram. Passei o resto da viagem me sentindo um monstro por ter talvez destruído o último resquício da humanidade, convencido que estava que o destino não me daria a oportunidade de encontrar pessoas vivas fora do Condado que não tivessem virados monstros canibais-estupradores-de-mulheres. E, Juan, eu estava errado! Viu, sua avó finalmente concordou com alguma coisa que eu disse. Eu sempre estou errado mesmo sob o olhar de Laura.

Nós estávamos viajando há muitos dias, não sei quantos, a duração do tempo havia sido modificada, o eixo da terra havia mudado a angulação, não tínhamos mais relógios confiáveis, nem tempo para inventar algum. Precisávamos encontrar uma casa, comida. Alimentávamos com as parcas plantas que podiam ser consumidas sem temor, este sim um grande aprendizado oriundo do confinamento. A água que dispúnhamos provinha da chuva, que após diversas filtrações sucessivas podia ser consumida sem corroer as entranhas, porém o gosto era pior que o de mijo de gato e não poderíamos ficar muito mais tempo vivendo assim.

As cidades estavam convertidas em amontoados de escombros parcialmente alagados por lama e esgoto. Entretanto havia prédios que não haviam sido seriamente afetados em suas fundações e que podiam ser aproveitados como abrigo futuro, e que deviam estar servindo de abrigo para pessoas. Encontramos algumas delas assim, e como era de se esperar, elas sabiam onde havia outras na mesma situação. A desgraça. Juan, mesmo que seja o fim do mundo, não impede que a humanidade siga a sua vocação, que é comunicar-se entre si. Humanos procuram meios de falar com outros humanos, isso é fato. Portanto, logo soubemos onde havia sobreviventes, e como haviam sobrevivido. As histórias variam muito, e quase todas envolvem uma parcela de sorte, não vou ficar aqui tecendo teorias.

O que vou dizer é que aos poucos nós fomos reconstruindo o que era possível. O grupo de refugiados urbanos, onde nós agora estávamos também, tratava de tentar remediar as perdas. Grupos de tarefas para desobstruir estradas, pontes, rios, casas, bibliotecas. Grupos de tarefas para buscar alimentos, sementes, sobreviventes; Grupo de tarefas para pensar e descobrir meios para descontaminar as águas; grupos de todos os tipos. Laura logo foi parar no grupo de enfermeiros e médicos, que não eram médicos e enfermeiros antes, mas tornaram-se pelas circunstâncias. Eu fui para o grupo dos construtores e ajudei a erguer pontes, casas, hospitais. Trabalhávamos muito, todos os dias, e o tempo passava rápido. O tempo passava e as demandas cresciam mais e mais, sobreviver é muito difícil, Juan! Os anos escorriam pelos nossos dedos enquanto tentávamos prover o básico sem muito sucesso. Tivemos períodos de fome, de doenças e de revoltas, mas também de sorte, sucesso e calmaria. Como antes, como antes de tudo acontecer.

Claro que eu pensava em voltar para o Condado, mas a rotina nos engolia. Quanto mais fazíamos, mais precisávamos fazer. Quanto mais avançávamos rumo a uma normalidade, mais difícil era manter o equilíbrio entre as pessoas. Até que um dia sua avó me disse que estava grávida. Eu não acreditei, pois as taxas de natalidade eram muito baixas graças à péssima nutrição que todos tínhamos. A última criança havia nascido morta há dois ou três anos. Vivíamos de hortaliças, carne de roedores e grãos. Os campos puderam ser cultivados após anos tentando recuperar o solo, e mesmo assim a produção não era boa, mas a sua avó estava mesmo grávida, e a criança nasceu e vingou. As coisas também foram se ajeitando, em um ritmo inexplicavelmente rápido, que antigamente dávamos o nome de progresso. Hoje eu chamo de ‘ a incrível capacidade que a humanidade tem de começar do zero’. Nós tivemos outros filhos e o final você já sabe.

Eu envelheci como professor universitário, sua avó como enfermeira. Seu pai lutou na guerra de unificação das colônias de sobreviventes da antiga França, de onde jamais regressaria... Nunca mais soubemos do Condado. E depois de tantos anos, não havia mais motivos para procurar saber...

Sua avó tentou por algum tempo, mas nada fora encontrado. Ir lá, sozinha, nunca permiti, ainda mais depois que as crianças nasceram. Quando finalmente estavam crescidas, sua mãe parou de falar no assunto.

É claro que à noite eu me pergunto o que lhes teria acontecido. É claro que sinto saudade. Mas o que você queria que eu fizesse? Largasse o certo pelo incerto outra vez? Eu não, eu era apenas um homem. Um homem que tem o que todos os homens têm: vergonha. Vergonha por ter partido, vergonha por não ter voltado, vergonha por ter uma vida boa. E a coragem de ter sobrevivido.

E ter gostado.

Mas eu não me arrependo.


...

E então? Curtiram? Eu sim, e muito! Obrigada, Vânia, e você também, Sandro, por sua participação. E como é Natal quero presentear vocês com uma lembrança da minha adolescência: cliquem aqui e ouçam a belíssima canção "Depois do Fim", do Bacamarte, a trilha sonora perfeita para as histórias do "Condado" espanhol.

Enfim, boas festas pra vocês, bom descanso e/ou divertimento. Antes do fim do ano eu volto.

Abraços a todos!

Um comentário:

Sandro Quintana - Andarilho® disse...

Oi Ana,

Teve um bom natal?
Que bom que gostou da minha idéia. Também achei a da sua amiga Vânia muito legal.
Espero que elas te inspirem a criar a continuação para o Condado :)
Quanto ao livro, bom, eu já tenho o 2013 (rs) como faremos, então?
Abração e um 2013 repleto de vitórias para você!