quarta-feira, julho 07, 2004

O Coiote: um trickster norte-americano



Coiote, Coiote, por favor, me diga
O que é a magia?

Magia é o primeiro gosto
das framboesas maduras, e
magia é uma criança dançando
sob a chuva de verão.

(Peter Blue Cloud. Elderberry Flute Song)
.

......

Pessoas,

Através destes versos do poeta de origem iroquesa, Peter Blue Cloud, tenho o prazer de apresentar um dos meus tricksters prediletos: Old Man Coyote.

Ao contrário de seus "colegas" do Velho Mundo, que têm (quase o tempo todo) uma aparência humana, os trapaceiros das histórias nativas americanas vêm sendo freqüentemente descritos como animais, embora pensem como homens e possam assumir essa forma. Segundo o etnólogo William Bright, isso se deve ao fato de esses mitos terem sido erroneamente interpretados pelos europeus, uma vez que os animais que aparecem nas histórias não são, na realidade, animais comuns. Eles são Primeiras Pessoas, membros de uma raça anterior à nossa, com poderes que os elevaram ao status de semideuses, heróis culturais e/ou antepassados da raça humana. As características desses seres teriam passado aos animais que carregam seus nomes, cujas figuras são algumas vezes utilizadas em representações do mito. Assim, os totens com figuras de corvos e as histórias sobre corvos, por exemplo, se referem na verdade a um Primeiro Corvo, ou ao Espírito que anima todas essas aves; e este pode estar identificado com uma pessoa, clã ou tribo que o tem como uma espécie de guia ou protetor.

No Brasil, animais como o jaguar e o gavião-real aparecem freqüentemente nessa posição, enquanto o papel de trapaceiro cabe a personagens como o Jabuti, do qual existe todo um ciclo de histórias, a Anta, a Saracura e o famoso Boto dos igarapés amazônicos. Já nas Américas do Norte e Central, vários animais são associados à figura do trickster, como a Aranha, o Corvo e a Lebre; mas o mais popular de todos é sem dúvida o Coiote, que deve seu nome (coyótl) aos Astecas e cujas histórias ocorrem numa área fenomenalmente extensa, que abrange desde a Colúmbia Britânica até a Guatemala.

Ainda segundo Bright, a adaptabilidade do Coiote (o que se estende ao animal propriamente dito, Canis Latrans) e o fato de se tratar de um dos mitos mais antigos o levam a ser chamado, em várias regiões, de "Old Man Coyote", ou simplesmente "Old Man". No entanto, a função do personagem no mito varia segundo a cultura. De um modo geral, o Coiote sempre está ligado ao desejo por comida e por sexo; mas, na Califórnia e na região do Plateau (Oregon, Idaho), ele é mais próximo do arquétipo do trickster e, portanto, mais comparável a seus congêneres de outras mitologias, com narrativas ligadas à criação do Mundo e ao roubo do Sol. Na Baixa Califórnia, o Coiote estaria mais envolvido com os tempos modernos, havendo registros de histórias que mostram as disputas entre ele e os soldados dos fortes militares, enquanto na América Central e no México não se assemelha de forma alguma a um herói cultural, fazendo quase sempre o papel de tolo (esse aspecto deve ter inspirado os criadores de Wile E. Coyote, o "Coiote" da Warner Bros. ... com o que ele gasta encomendando "armas mortíferas" da ACME, já teria sido possível pagar várias refeições mais substanciais do que o magricela do Beep-Beep!). ;)

Em suas obras de auto-conhecimento baseadas na tradição nativa americana, Jamie Sams aponta ainda a identificação entre o Coiote e aquilo que é conhecido como a "Criança Interior": aquele aspecto, dentro de nós, que é verdadeiro e inocente, livre das máscaras do "personagem social" que aprendemos a encarnar. A interpretação ganha força se pensarmos nele (e nos demais tricksters) como aqueles que, tal como as crianças, conservam todas as suas potencialidades intactas: a capacidade de ação, a do reinício, a da sobrevivência e, last but not least, a da quebra das regras estabelecidas. Enfim, o Coiote é capaz de qualquer atitude inesperada, mas sua existência e participação nas narrativas é fundamental para que as coisas continuem acontecendo. E, contra as expectativas dos que previam o fim dos mitos e histórias populares no mundo moderno... elas continuam.

Entre os nativos americanos, as histórias do Coiote ainda são usadas como forma de ensinar os valores tradicionais e fortalecer o senso de identidade e dignidade. Por outro lado, a partir da década de 1950, os pesquisadores começaram a registrar as histórias, estabelecendo conexões com outros mitos e sistemas de crenças - o beatnik Gary Snyder, por exemplo, traçou um incrível paralelo entre o Coiote e os ensinamentos do zen-budismo - e contribuindo para a sua difusão, ao passo que autores como Blue Cloud e Bruce Bennet se inspiraram no trapaceiro em seus poemas e textos literários. Assim, aos poucos, nosso Old Man deixou de ser uma figura restrita às narrativas orais dos nativos americanos para assumir, finalmente, as dimensões universais que compartilha com seres tão ilustres quanto Hermes, Sísifo, Ulisses e o hour-concour nórdico, o trickster por excelência e patrono destas páginas: Loki Laufeyjarson.

Arte de Kyoht Luterman.

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