segunda-feira, maio 02, 2005

Eu, dos Contos de Fadas

Fui entrando devagarinho pelo portão gradeado, com a mochila no ombro, a capa de chuva escondendo os duendes na minha camiseta. No pátio, crianças brincavam de pique, e algumas delas se detiveram para me olhar, mas não por muito tempo. Era um lugar de constante entra-e-sai.

Posso ajudar, senhora? Um segurança.

Marquei com a Maria Lúcia.

Tudo bem. Passe na Recepção, por favor
, disse ele, apontando para o salão a cerca de 30 metros. Burocracia inevitável, mas até que eficaz: a sala da pessoa que eu procurava fica bem mais longe, e é melhor localizá-la primeiro, por telefone. De pé junto ao balcão, esperei alguns minutos até que a recepcionista acabasse de atender uma senhora e me olhasse com ar interrogativo.

Marquei com a Maria Lúcia, repeti. Sou a Ana Lúcia Merege.

Ah, sim... De onde?
, indagou ela, abrindo sem olhar uma página da agenda. Hesitei um segundo entre dizer "da Biblioteca Nacional" - que é o mais correto, mas que, naquele contexto, não faria muito sentido - ou "da Semana Literária", o que estava de acordo com o momento, mas podia se aplicar a diversas pessoas, esperadas para aquele dia e os subseqüentes. Então, eu tinha que me atribuir uma identidade inconfundível... e, nesse espírito, respirei fundo e mandei:

Ana Lúcia Merege, dos Contos de Fadas.

.......

Isso foi num colégio aqui de Niterói, ao qual me chamaram para bater um "papo de autor" com crianças da terceira e da quarta séries. Eu, meio apreensiva com o que ia acontecer, afinal iam ser quatro turmas por vez - mais de cem figurinhas - e não só eles não conheciam meus livros como estes, também, não são adequados a essa faixa etária, com possíveis (e raras) exceções. E eu saí da Escola Normal com a pecha de incapaz de manter o controle de classe. Caramba... Como eu ia me arranjar?

Mas tudo correu tão bem que até agora estou em estado de graça. Embora estivéssemos num auditório, sem chance de sentar em círculo e ficar mais próximos uns dos outros, não me colocaram numa posição inacessível, mas sim com um microfone sem fio, circulando no meio do pessoal. O tema do qual me pediram para falar, além dos meus livros - contos de fadas, é claro, destacando um pouco a figura de Andersen - não só é um dos meus preferidos mas permite criar muitas pontes com o pessoal mais novo. Especialmente a que usei para quebrar o gelo:

OK, então eu soube que vocês estão estudando contos de fadas... O que é um conto de fadas, afinal?

Silêncio, risadinhas, o teste de sempre, mas também mãos levantadas. Sussurros, aqui e ali. E logo - graças! - as primeiras vozes.

Tia! Tia! Ë uma história que tem fadas e bruxas!

É uma história inventada!

É uma história que tem magia!

Ah, é isso?
A deixa que eu esperava. Ah, então Harry Potter é conto de fadas? Tem magia...

Nãããão!

OK. Yu-Yu Hakusho, então.

Não!

Tia! Você vê isso?

Conto de fadas é uma história mais antiga. É do passado
, disse a inevitável gorduchinha de óculos. Oh, doce espelho da minha juventude!

Muito bem! Mas vocês sabem como, realmente, é antiga? Os contos de fadas existem há milênios, disse eu, fazendo aquele ar misterioso. E daí para a frente foi só desenrolar o novelo.

Ouso dizer que deu para falar de tudo: as mesmas coisas que falo para as pessoas que fazem meus cursos. Com outras palavras, é claro, e produzindo um sentido diferente, mas com a mesma essência. As crianças eram surpreendentemente perceptivas, quase todas muito espontâneas, e algumas das perguntas que fizeram foram uma grata oportunidade de partilhar um pouco do que sei e do que sou. Qual é meu livro preferido? Quem são meus escritores prediletos? Quem são meus escritores brasileiros prediletos? O que vou publicar agora? Eu incentivaria minha filha a escrever? Gostaria que um livro meu virasse novela? Escreveria um livro de Culinária?

Tá louco! Eu detesto cozinhar!, exclamei, sem deixar de sorrir. A pergunta não tinha um porquê, mas foi a única que ocorreu ao menino, e ele tinha que
fazer uma pergunta. Eu, que mais do que tudo receava o silêncio, encontrara um grupo ávido e generoso de interlocutores. E saí gratificada no final.

.......

Essa experiência não me sai da cabeça enquanto reviso minhas apostilas sobre leitura e bibliotecas escolares. Quando comecei a dar esse curso, a ênfase era no aspecto organizacional, e hoje é cada vez mais nas atividades de dinamização da leitura. Quase vinte anos depois, o círculo vai-se completando, e eu, que "fugi" da faculdade de Letras - e sobretudo da sala de aula - me vejo de volta, ansiosa por readquirir alguma prática.

Ou talvez não seja um círculo, mas uma espiral, e a menina que jamais soube "controlar uma classe" como professora retoma sua vocação sob o novo prisma de mediadora de leitura e contadora de histórias. Quem sabe?

.......

Abraços pra vocês,

Até a próxima!

Ana Lúcia

Nenhum comentário: